AutoCinesia
quarta-feira, outubro 1
Frequentador de Sonhos
- A Terapia (I)----------------------------------------------

- Senhor Alfredo Sigmundo, seja bem vindo. Já estava à sua espera. Hoje atrasou-se!
- Sabe, foi complicado chegar aqui, muito trânsito, muitas pessoas na rua. A sua secretária fala pelos cotovelos, e eu como cavalheiro, não a impedi.
- Sim. Compreendo. Mas costuma chegar atrasado aos compromissos ?
- Só quando o compromisso precisa de um ajuste horário.
- Ok, Alfredo, deite-se no divã, é muito confortável. Peço-lhe que se descontraia, por favor.
- Sim, claro.

- Antes de Adormecer ----------------------------------------------

Um candeeiro direccionável estava apontado para cima, difundido luz em tons de amarelo para as paredes brancas do quarto, mostrando contornos pouco esclarecedores da mobília existente. Fios no chão, um tapete enrolado, a cama que ficava ao centro e uma janela completamente aberta, mostrava uma paisagem urbana, incrivelmente detalhada, coberta por um manto de neblina azul e pontinhos amarelos, distantes, que tremiam devido ao calor retido no cimento dos edifícios.
Sem sair do seu quarto, com a ajuda do seu telescópio, Alfredo, vagueva pela cidade, como fazia todos os dias. Reparava nas pessoas, nas suas tarefas habituais, via o trânsito, anotava pormenores no seu bloco de notas, hábitos de uma vida rotineira.
Os seus olhos, começavam a pesar com sonolência e pensou "tenho que encontrar alguém!". Direccionou o telescópio para os alvos habituais, mas hoje, ninguém estava lá, só via estoros e cortinas corridas. Entrou no desespero que ele conhecia muito bem, o desespero de precisar tanto de acalmar o vicío, que até doia.
Alguns movimentos para a esquerda e direita, com telescópio, e consegiu localizar alguém que lhe podia ajudar, era uma rapariga, sentada na cama, a escrever no seu diário e agora Alfredo sabia que era uma questão de tempo para ela adormecer. Viu-a a fechar o diário, mudou de roupa, para o pijama, tratou da sua higiene e deitou-se, acompanhada sempre pelo olhar resistente de Alfredo. Não sabia o que lhe era reservado para aquela noite, mas arriscou, como faz sempre, arriscou em sonhos desconhecidos, como alguém arrisca, quando não tem nada a perder.

Alfredo fechou os olhos, deixou-se cair para frente e sentiu-se a levitar, saindo da janela do 5º andar, flutuou pela cidade, lentamente, aconchegado pelas almofadas de ar e pela brisa do vento até chegar à janela da rapariga. Ficou uns momentos a olhar, a espreitar o quarto e com paciência, começou a entrar no sonho dela.

Enquanto a rapariga de cabelos finos não se entregava ao sono profundo, Alfredo percorreu-lhe as memórias, sorriu e chorou, aprendeu e ficou assustado.
A rapariga perdera a mãe num acidente de viação. Ela viu a progenitora a ser projectada violentamente pela janela da frente dissolvendo-se no ar, deixando goticulas de sangue suspensas, um instante recordado como uma fotografia, registo para uma vida inteira.
Um curto choque era agora uma lentidão anormal, o metal contorcido voava livremente, os pneus deixaram de riscar o asfalto, um caos organizado pela onda de impacto. Os cabelos curtos da criança apontava na direcção da mãe, forçados pela cinesia do veículo. A cadeira de bebé tinha sido o unico objecto que tinha ficado ímovel, segurando uma curta vida, que se transformou na continuação, de uma vida longa.
Alfredo, entrou na sua memória, pegou na criança e ergueu-a da lata distorcida, limpando-a dos pequenos vidros afiados, abraçou-a, suspirando palavras de conforto ao seu ouvido, explicou-lhe tudo, para um dia ela compreender. Entregou-a com carinho ao enfermeiro.

A rapariga mexeu-se, arrastando consigo os lençóis. Estava desconfortável. Alfredo sentiu isso e não podia evitar que o sonho se tornasse um pesadelo, saiu dessa recordação e finalmente, o sono profundo tinha chegado. Alfredo recriou como por magia, bosques verdes, cascatas puras e troncos de àrvores feitos de chocolate e ela, passou a noite toda, debaixo de um sol ameno que lhe cobria o rosto sorridente. Ela acordou e foi para a escola, com um irreal sabor na sabor na boca, a chocolate.

Depois de uma noite bem aproveitada, Alfredo preparava-se para mais um dia na Faculdade. O ar da manhã apresentava-se húmido e fresco, transmitindo um sinónimo de relva fresca e passeios limpos. O seu objectivo: chegar ao Metro, para se deslocar, como já fazia à muito tempo.
A luz artificial, mostrava o engenho que chegava lentamente, inundado de rostos pensativos. As portas da carruagem concederam-lhe entrada, agarrou-se onde podia, e seguiu viagem. Uma sensação de cumplicidade inundou o compartimento, Alfredo estava presente no olhar timido dos passageiros, todos o conheciam. Alfredo gostava de observar as pessoas,as multidões nas ruas, punha uma esperança imensa na humanidade e na sua bondade.
Os corpos balançavam-se com a trepidação da locomotiva subterrânea, e pequenas conversas surgiam, acompanhadas pelo som instrumental da carruagem, era o cenário tipico de uma viagem de metro. Alfredo, agarrava-se com mais intensidade, a força cinética aumentava, algo fora do comum. Um silvo ensurdecedor, surgiu, vindo das linhas férreas, assobiando uma melodia hedionda. Algo estava errado. As luzes exteriores surgiam cada vez mais rápido, um cheiro a queimado era evidente, e quando o metro passou uma estação, a reacção da multidão foi de pânico. O impacto manifestou-se violentamente, corpos voaram livremente colidindo em tudo o existia na carruagem, Alfredo acompanhou a multidão em queda livre.


- A terapia (II) ----------------------------------------------

- Alfredo, sabes o que estás a fazer aqui? - Inquiriu o psicólogo.
- Bem, julgo que estou aqui para nossa sessão terapêutica, como habitual - dito isto, pousou as mãos no peito, como a pergunta fosse normal, tranquilizando-se.
- Tu deves ser o paciente mais antigo que eu já tive, oito anos a ouvir-te, a estudar os teus problemas. - Alfredo encarou-o: era um choque ouvir aquele desabafo, não era normal, pensava.
- Não estou a perceber o que me está a querer dizer.
- Lembras-te como chegaste aqui ?
- Lembro-me perfeitamente. Saí de minha casa, apanhei o autocarro, estive a falar com a sua secretária e entrei. - De repente, o seu peito apertou-se: imaginou que algo perfeitamente assustador fosse a acontecer.
- Não me refiro a hoje, mas sim, como me encontraste. Talvez o melhor seja entenderes por ti próprio. Vai abrir a porta por onde entraste. - demorou a levantar-se, estava confuso, não sabia o que ele queria dizer, mas fê-lo por curiosidade. Ergueu-se lentamente, e foi abrir a porta.
- Mas que raios...! - Alfredo ficou a contemplar a visão.
- Não vejo nada lá fora, está tudo branco, não existe nada! Não entendo! - percorreu a sala do psicólogo como um doido e abriu as todas as janelas para confirmar a visão, e lá estava ele, o infinito, o vazio, o nada. Não havia céu nem chão, nem tão pouco o norte e sul.
- Alfredo, ainda hoje me custa a acreditar, mas eu entendi um pouco, como funciona o mundo. Alfredo, entende, estou sentado nesta cadeira, a tocar nesta textura maravilhosa de madeira, mas eu sei que não passa de um... sonho, uma imaginação minha e tu entraste. – O psicólogo estava com medo do que acabara de dizer, todas as suas crenças estavam destruídas com aquela afirmação, tinha que aceitar a cruel verdade.
- Lembras-te do acidente do metro ?
- Sim, lembro, mas isso, já faz algum tempo.
- Inverno de 1995, 28 Outubro, muitas pessoas morreram, estás em coma desde o acidente! – Alfredo mostrava-se cada vez mais perplexo: nada fazia sentido. O psicólogo levanta-se para poder gesticular melhor:
- Durante o teu estado de inconsciencia profunda, tens estado a vaguear nos sonhos das pessoas, perdido. Tenho ouvido várias pessoas a relatarem que te viram nos sonhos, eu tive pacientes que pronunciavam o teu nome vezes sem conta, até que um dia, entraste por aquela porta, pelos meus sonhos adentro, e tomei-te como meu paciente, para te libertar.

- Do lado de fora (I)----------------------------------------------

Os lencois finos cobriam Alfredo, estava entubado, como se fossem cordas de salvação que lhe saíssem de todas as partes do corpo. Raquel estava-lhe a segurar a mão,sentia um vapor quente a emanar do corpo de Alfredo. O médico de serviço chegou e fez uma pausa, antes de falar, a olhar para a aquela cena, que tanta vez presenciara.
- Senhora Raquel, a família de Alfredo deseja que se prepare a máquina. – Um choro compulsivo, com sentimento, ecoou nos corredores. Ela lembrava-se de tudo o que tinham passado juntos, do seu sorriso, da sua inteligência e do carinho que ele sempre soubera dar-lhe. Apertou com força, a sua mão.


- A terapia (III) ----------------------------------------------

- Estou a sentir uma força na mão como alguém me estivesse apertar! – Alfredo andava pela sala do psicólogo, agarrado à mão, a olhá-la e a tentar perceber. Durante muito tempo, também tinha ouvido uma voz, que lhe fazia lembrar alguém, mas não conseguia perceber o ela lhe dizia nem de que era.
- Ouve, Alfredo, o teu tempo está a chegar, tens que lutar agora percebes? Tens que sair pela porta donde vieste! Salva-me a mim e a ti!
- Mas para além da porta está o vazio! Só um nevoeiro intenso, não sou capaz!
- A tua vida está para além do que tu pensas, existem pessoas ansiosas por ti, que te amam. Querem-te de volta.
- Eu prefiro estar aqui, tenho todos os poderes do mundo, faço o que eu quero. – a sua atitude era a de um menino mimado.
- Claro que tens poderes, tens tudo aqui, excepto uma noite descansado, e sabes porquê ? – Alfredo não dissera nada, esperou pela resposta.
- Lá fora, estás a dormir, já faz oito anos! Enfermeiros que te mudam a arrastadeira, a tua familia, todos fartos de te sentir como um verdadeiro morto, e por muito que lhes custe, podem desligar o botão, aquele que te segura à vida. E neste momento estão a pensar seriamente em pressionar esse botão. Andaste sempre a vaguear de mente em mente, à procura da tua própria consciencia. Eu bem sei a dificuldade de entrares num sitio onde já lá estas, é teoricamente impossível, mas criaste-me à tua imagem para eu poder entrar na tua mente e convencer-te, como fizeste muitas vezes, aos outros.

- Do lado de fora (II) ----------------------------------------------

A Família reunia-se à volta da Alfredo, a mãe estava a assinar um papel, que iria permitir o médico desligar a máquina. Todos consentiram com um olhar triste. Era o momento da tragédia física

Um som pesado aumentava nos corredores, alguém a correr. A família, olhou para trás, à espera de ver o que era. Surgiu na sala, o psicólogo, cansado de tanto correr, que gritou sem forças.
- Esperem! Não podem fazer isso! – O cansaço era óbvio, mas continuou.
- Vocês não vão acreditar, podem-me chamar doido, mas ele deve estar mesmo a chegar! – A Mãe virava-se completamente para ele e num tom ameaçador perguntou-lhe:
- Ele quem, senhor Castelo ? Quem está a vir aí ? Não acha que já perdeu tempo suficiente com essas conversas de psicólogo ? Não resultou nada, nem você nem a ajuda médica. Eu sinto saudades do Alfredo, do meu filho, compreende ? Eu quero-o ao pé de mim, mas ele já morreu à muito tempo e eu não queria aceitar isso. Olhe para ele! Olhe! É um ser que só respira.

- A terapia (IV) ----------------------------------------------

- Alfredo, liberta-te. – E dito isto, abriu a porta que dava para o infinito.
- Deixa-te cair – Alfredo agarrou-se com as duas mãos à ombreira da porta, e deixou-se inclinar para a frente, simulando a sensação de se deixar cair, uma lágrima de medo e confusão percorreu-lhe o rosto.
- Não tenho coragem, é tão assustador – agora chorava de verdade, como um menino assustado. O luz branca do exterior, tinha inundado o rosto e a sala, imitava perfeitamente a cor da neve. As mãos deslizaram, e sentiu a adrenalina a subir furiosamente. Pelo canto do olho, viu o quarto a afastar-se, até ficar um quadrado negro, lá no alto, e sentia a sua roupa a vibrar, correndo contra o vento. Lá em baixo, surgia-lhe um pormenor. Não se quis aproximar, porque sabia, que a aproximação iria ser natural, limitou-se a esperar.
Viu uma cama, com alguém deitado, e os pormenores ficavam cada vez mais densos, era ele que estava deitado naquela cama. Caiu violentamente sobre si mesmo e acordou do seu próprio sonho.


- A chegada ----------------------------------------------

Os tubos rebentaram, tudo se mexeu, levantou-se repentinamente, inspirando oxigénio, como estivesse debaixo de àgua, à muito tempo. Rostos indecisos, não sabiam se haviam de chorar ou rir, abraçaram-no com saudades.

FIM ?

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