AutoCinesia
terça-feira, setembro 23
O apartamento.
6 horas da manhã:

Os leds vermelhos tremiam suavemente e o quarto ganhava um pequeno tom avermelhado, que lutava com a luz do planeta em fogo. Uma inspiração aterradora, um expirar violento, foi o som que encheu o quarto. Adicionado mais um minuto às 6 da manhã , o som dos lençóis acordam, o raspar do tecido sugeria algo de anormal, por baixo deles, um movimento irracional procurava uma posição onde descobrisse focos de calor, deixados por um braço ou por uma perna sua. Era tudo natural, irreflectido.
O copo com água, já recebia reflexos vindos da luz proveniente do exterior, mostrando as partículas de pó características do silêncio da noite, que se deixaram cair.
Voltou-se mais uma vez. Procurou o calor natural que deixara nos lençóis, mas subitamente este já tinha começado a desvanecer, deixando o corpo a pensar, no que fazia ali, já sem vontade do conforto. Levantou-se. Calçou os chinelos, perdeu textura da alcatifa que tocava nos seus pés.
Deixou-se ficar. Passou cinco minutos a olhar para o infinito, como se ainda estivesse a dormir, de olhos bem abertos, mais do que o normal. Coçou a cabeça, não com vontade mas com o hábito e a necessidade de pôr a sua consciência a funcionar. Vestiu-se, foi para o trabalho. Voltou.

O despertador tocou. Novamente seis da manhã. Os leds vermelhos tremiam sem vida e o quarto não tinha um tom avermelhado. Chovia. O cinzento era rainha no quarto. A criatura tossiu inesperadamente, deixando-se descair de novo, depois de contrair os músculos doridos da diferença de temperatura. Ao seu lado, estava alguém. Um homem. Tocou-lhe nos cabelos húmidos de transpiração, destapou-lhe o ombro e viu a sua pele que combatia com a escuridão cinzenta do quarto. Num gesto de protecção, tapou-lhe o ombro que desnudara, para sua própria contemplação. Voltou para a posição inicial de quem sai de uma cama, calçou os chinelos, removeu o guardanapo e bebeu a água imaculada de impurezas.
Afastou o cabelo negro e comprido e levantou-se confiante numa vida diferente. O seu trajecto pela casa foi modificado pela necessidade de um banho quente e relaxante.Não tinha pressas, sobretudo hoje.
O som da intempérie, juntava-se ao som do liquido precioso que enchia a banheira. Despiu-se lentamente, acompanhando a velocidade com que a banheira se enchia e entrou, deixando a sua pele habituar-se ao excesso de temperatura que a água lhe oferecia. A humidade, a sensualidade de um corpo na água, os cabelos meios secos, meios molhados, tornavam o ambiente erótico e sedutor.
Os reflexos do azulejos, foram deturpados, pela entrada do homem, semi-nu,silencioso. Fora um verdadeiro predador, analisava o terreno, tocando, descalço na mármore fria. O seu desejo intenso, mergulhar no pequeno rio, onde alguém já estava à sua espera. Despiu-se completamente e entrou.

Repetidamente seis da manhã. Não havia leds vermelhos, nem chuva, apenas os lençóis já arrefecidos depois de muitas horas ao abandono. Apenas o ruído de uma rádio, que não sintonizava nada e emitia interferências electricas. A janela aberta puxava do exterior, o frenesim de uma cidade em movimento. O apartamento silencioso foi violado pelo toque do telefone, que emergiu do nada. Foi para o atendedor de mensagens. A voz do homem, foi reproduzida por uma série de circuitos e fios.
- Eu sei que estás aí - o tom da sua voz era de afirmação.
- Foi um erro. Pensei que estava a fazer bem e afinal só estava a ter pensamentos que me punham indefeso e sem forças. - Curiosamente, os sons da cidade ficaram mais suaves, como se esperassem ouvir o que se iria dizer, imprevisivelmente.
- Lembras-te quando eu me deitava no teu colo, a ouvir o som do mundo e chorava compulsivamente? Chorava porque não acreditava. Mas agora acredito. Estás aí ? Atende... Entende-me... - as suas palavras iam-se perdendo pela casa, a voz sintética reverberava pelas paredes amareladas. A porta da casa-de-banho entre-aberta , mostrava algo subitamente quieto.
Era ela. Cabelos pretos confusos, água avermelhada e um pulso inocente, aberto pelo sofrimento de uma vida que não lhe dera nada em troca.

Seis da manhã. Não havia nada.

.::movimentos-mentais-experimentais::.

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